" A menina que trabalha na relojoaria nunca fez isso com o relógio de qualquer outra pessoa. Ela está surpresa consigo mesma. S. WIlby ficou parada na frente da loja, dias a fio, tímida e delicada, recolhida, enigmática, olhando para os pés o tempo todo. Ela tinha fingido não ver S.Wilby. Não sabe por que fez isso. Parecia ser a coisa certa. Ela não estava pronta. O momento era errado. Era constrangedor. É constrangedor agora, quando ela pensa a respeito, e quando pensa ela sente pequenas asinhas tocando o seu peito por dentro, ou algo por ali, enfim, revirado, tenso, trabalhando."
HOTEL MUNDO, ALI SMITH
"[…] eu estou ficando louca caralho falando com uma pessoa morta uma pessoa que está morta & não pode ouvir nada & olha aqui eu falando com ela & contando piadas puta que pariu eu estou perdendo o juízo o juízo de Clare Wilby por favor se apresentar no atendimento ao consumidor eu é que sou a piada eu sou uma puta piada o meu coração está acelerado por causa de alguma coisa ele está indo na minha frente é muito foda falar com ela assim foda porque agora eu falo com ela o tempo todo a gente mal se falava quase nunca eu não consigo tirar isso da minha cabeça se uma pessoa está morta ela pode estar mais viva do que era quando estava viva de verdade isso é louco isso é lobotômico de verdade eu preciso para de pensar deste jeito está do avesso é retardado cacete se alguém soubesse que eu ia embora aqueles docinhos eles iam me por em um hospício […]" p. 198
"[…] & aí o meu coração estava caindo eu senti alguma coisa aconteceu a casa tinha mudado alguma coisa tinha entrado pela porta & mudado a casa não era só a nossa casa era tudo lá fora também como se tivesse tudo sido esmigalhado & depois grudado de novo com cola por alguém mas tudo na ordem errada & a gente etapa parado na entrada em casa tinha ficado claro ela fora por conta própria ninguém na entrada se mexia veio mesmo assim como sempre a porra da luz do dia." p.204, 205
"[…] & então estava todo mundo olhando pra cima pra te ver olhando pra baixo pra água sempre tem aquele momento antes de você saltar quando você espera só uma fração de segundo parece que você pode desistir de mergulhar você pode recuar se quiser tipo & daí eu não sou obrigada a fazer isso & aí mesmo assim você sempre fazia o salto você sempre dava um passo pra frente empurrava o trampolim ele subia descia subia aí subia os teus braços esticados & aí lá você ia pela ar caindo era sempre tão absolutamente genial você rasgava o ar bem fácil como se o ar estivesse esticado lindo como não sei o que tipo um peixe tipo uma faca quente na manteiga tipo você mergulhando como sempre na água." p. 207
"Subi, para provar que conseguia; eu me enrolei que nem um caracol na concha, o pescoço e a nuca dobrados para dentro, bem apertados contra o teto de metal, rosto entre os braços, peito entre as cochas. Fiz um circulo perfeito e o quarto balançou, a corda rompeu, a cabine caiu uuuu-
-huuuuuu e quebrou no chão, quebrada eu também. O teto desceu, o chão subiu para me encontrar. As minhas costas quebraram, o meu pescoço quebrou, o meu rosto quebrou, a minha cabeça quebrou. A gaiola em volta do meu coração seu quebrou e o meu coração saiu. Acho que era o coração. Ele se libertou do meu peito e se enfiou na minha boca. Foi assim que começou. Pela primeira vez (tarde demais) eu soube o gosto do meu coração." p.14
"Um bocado de pó seria legal. Dava para pegar quanto você quisesse, não?, na hora que desse vontade, dos cantinhos dos quartos, e embaixo das camas, de cima das portas. Os cabelos enrolados e as coisas secas e os fragmentos de o-que-um-dia-foi-pele, todos os glamorosos dejetos de criaturas de fôlego moídas até restar só sua essência e coladas de novo com restos de teias usadas e flocos de uma mariposa, as escamas translúcidas da asa desmantelada de uma varejeira. Seria fácil (pois você consegue fazer uma coisa dessas quando quiser, se quiser) você cobrir a mão de pó enrolar um nadinha de pó entre um dedo e o polegar e ver ele formar um carimbo da tua digital, tua, única, de mais ninguém. E daí você podia limpar com uma lambida; eu podia limpar com a minha língua, se tivesse língua de novo, se a minha língua fosse molhada, e eu pudesse sentir o gosto de verdade. Sujeira linda, cinza e vintage, o encardido da vida, grudando no céu ósseo de uma boca e sabendo a quase nada, o que é sempre melhor que nada." p.13
"Então eu treinei a fotografia da escola que estava em cima da televisão. O rosto era de inocência e cansaço, a idade, treze, um tantinho vesgos os, os. As coisas que ela usava para ver. Fiquei craque em fazer o vermelho das coisas em uma outra foto, uma com outras meninas, e todas no borrão tinham luzes vermelhas e uma audácia fingida saindo do rosto e bebidas nas mãos. Conferi para ver se estava representando a menina certa. Lá estava ela, escondida no fundo. Trabalhei bastante no calor da aparência dela no retrato da lareira, o retrato dela com os ombros em volta da mulher sentada agora tão perdidamente na cadeira. A mãe dela.
Eu conseguia fazer a ela do oval da lápide sem nem tentar; era mole, um leve sorriso mas séria; foto de passaporte para entrar em outros mundos. Mas a que mais gostava de representar era a que tinha também a irmã deixada-para-trás, uma foto que a irmã guardava escondida na bolsa e só olhava quando os pais estavam dormindo ou quando estava e algum cômodo com fechadura. As duas estavam sentadas em um sofá, mas a menina que não era mais tinha sido apanhada no meio de dizer alguma coisa, sem olhar para a câmera. Aquela era minha obra-prima, o ângulo do movimento, a cara risonha, o algo ainda por dizer. Aquela custou trabalho para ser tão espontânea." p.20
"Mas a irmã me sugava com uma sede terrível. As aparições nunca eram o bastante para ela. Com o troféu, com as luzes vermelhas saindo do meu rosto, com o sorriso de passaporte, com as coisas divertidas por fazer. Todas as caras que eu fazia eram sugadas e sumiam na fratura que percorria o seu corpo. O verão passou, veio o outono e a sede ainda deixava ela escurecida; na verdade ela parecia ainda mais sedenta, queria mais e as cores estavam desbotando. Quando o inverno chegou eu parei. (Desde então tem sido mais fácil, eu percebi, aparecer para pessoas que não reconhecem o que estão vendo. Eu olhei para o rosto rachado da menina triste e soube. Encarando o que significa tanto é mais fácil não ter cara.)" p. 21
"O corpo dela esta pulsando. Ela pode sentir. Ela pode ver. Ela pode ver até o seu sangue, andando por dentro dos olhos, na junção de luz e trevas. As suas íris por trás das pálpebras florescem e fecham ao ritmo de sua pulsação como botões de flores sensíveis à luz filmados em velocidade acelerada ou os sensíveis diafragmas de câmeras." p. 78